Sucumbir ou enfrentar? Ainda o drama da escravização contemporânea
O Ministério Público do Trabalho anunciou a realização de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com as vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi. O acordo foi realizado após 207 pessoas serem resgatadas em condição de escravização nas propriedades dessas empresas. A maioria reside no estado da Bahia, o que pode implicar, além do crime de redução à escravidão, também a possibilidade de configuração de tráfico de pessoas. As notícias são de “agressões com choques elétricos e spray de pimenta, cárcere privado e agiotagem”, além – evidentemente – da ausência de registro do vínculo de emprego e, portanto, do pagamento correto das verbas trabalhistas.
A notícia causou reação. Para ambos os lados. Viralizou um vídeo em que o vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel exortava a prática da escravização. Há pedido de cassação do seu mandato e instauração de inquérito, mas ele segue a vida, livre e representando quem nele depositou o voto. O Ministério Público do Trabalho ingressou com demanda pedindo R$ 300,00 mil de indenização do vereador, pela prática de dano coletivo. Outra notícia dá conta de 82 trabalhadores resgatados em Uruguaiana, em condição de escravização, em duas fazendas de arroz. Eles noticiaram que desmaiavam de fome e tinham de comprar alimento por valores altos. Entre os escravizados, havia adolescentes.
Pois bem, a questão que precisa ser debatida é não apenas porque, em 2023, é ainda tão persistente a prática de escravizar pessoas. Disso falei no último artigo. Compreender a relação de tolerância desse escândalo com a dificuldade que temos em respeitar e fazer aplicar os direitos trabalhistas previstos na Constituição da República é o primeiro passo. Ao naturalizar jornadas de 12h sem intervalo e despedidas sem qualquer motivação, estamos reforçando uma racionalidade que, no limite, não vê problemas na exploração do trabalho sem pagamento e em condições degradantes.
Hoje, quero discutir outro aspecto da mesma questão. Escravizar no Brasil é um ótimo negócio, porque o sistema de justiça não consegue ter uma resposta que dê conta do escândalo que é manter pessoas nessa situação em pleno Século XXI. E o termo de ajuste de conduta firmado pelo Ministério Público do Trabalho é exemplo disso. A resposta que o ordenamento jurídico prevê para quem escraviza é a expropriação (art. 243 da Constituição) e a condenação criminal (artigo 149 do Código Penal).
Essa previsão está no texto legal por uma compreensão construída historicamente, de que não é possível que tanto estudo sobre direitos humanos, tantos avanços tecnológicos, tanto discurso sobre democracia e cidadania não resultem, pelo menos, o impedimento real (e não apenas retórico) de práticas escravistas.
Ainda assim, além de não haver notícia de pedido formal de expropriação das terras em que essas pessoas foram subjugadas, o sistema de justiça ainda se presta a realizar um acordo que premia os escravistas. No acordo feito pelo MPT, 2 milhões serão distribuídos entre as vítimas e R$ 5 milhões serão destinados a ações sociais.
Portanto, cada escravizado receberá R$ 9.600,00 de indenização.
Enquanto isso, rápida pesquisa na internet indica que a “Cooperativa Vinícola Garibaldi consolidou, no ano passado, faturamento de R$ 243,4 milhões, aumento de 29% sobre o exercício anterior” (Jornal do Comércio, em reportagem de abril de 2022). Em 2022: “a Cooperativa Vinícola Garibaldi teve um faturamento de R$ 265 milhões em 2022, cifra que significa avanço de 10% em relação à obtida em 2021” (revistanews). A Aurora alcançou em 2022 um faturamento de R$ 500 milhões (de acordo com reportagem do site Investnews). No site da Família Salton é possível ler que em 2022, a vinícola “acumulou 55 premiações internacionais” e teve o “maior faturamento já registrado em toda a sua história de 112 anos, superando os R$ 500 milhões. Com isso, a empresa se aproxima de sua meta de chegar em R$ 1 bi até 2030”.
Impressiona a disparidade de valores: entre o lucro obtido pelas empresas, o valor da indenização para as pessoas escravizadas e o valor destinado a outras ações sociais. Isso sem falar nas cláusulas do tipo “abster-se de admitir, manter ou submeter trabalhador” em “condições contrárias às disposições de proteção ao trabalho, reduzindo-o, em qualquer das suas formas, à condição análoga à de escravo” ou abster-se “de aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa mediante ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, a fim de submetê-la a trabalho em quaisquer formas de servidão e/ou em condições análogas à de escravo”. Não sei se eu ando um tanto impaciente, mas me parece realmente inacreditável que algo assim possa ocorrer no momento presente. É realmente necessário que em um acordo com o Ministério Público essas empresas assumam compromisso de não mais escravizar?
O problema, parece-me, está justamente no fato de que a ordem jurídica não é levada à sério. Pois do contrário, quem escraviza não pode empreender. Nem ter propriedade. Conseguimos que essa regra fosse incluída no texto constitucional, mas não conseguimos que ela tenha qualquer eficácia. Daí porque é preciso firmar compromisso de que tais empresas, que seguirão lucrando seus milhões, se comprometam a – daqui para frente, talvez – respeitar o pacto social vigente.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.